27.3.24

Desapontamento

 Fugimos da cor dos segredos

iluminados apenas pela sombra

que entre os nossos dedos escorre. 


Ovelhas, 

velhas ovelhas sebosas,

cai-nos o pelo pelas costas

e desescamamos o ser

em pétalas de fomos.


Sentados em bancos de jardim enferrujados

olhamos o amanhã com olhos cheios de

medo,

aterrorizados pelas gordas do jornal do dia,

fingimos ser apenas burros

que pastam do pão circense

e rezam a um qualquer deus. 


Bebemos, fumamos, sniffamos, injectamos:

esquecemos,

desaparecemos entre os números das estatísticas 

porque

amanhã é outro dia

o sol nasce de novo

o despertador toca de novo.


Engraxarei os sapatos, 

farei a barba, 

apanho o cabelo, 

visto um dos fatos

e caminho, cigarro no canto dos lábios

em direcção ao metro. 


A rotina não foge de nós, 

por muito que possamos tentar

fugir de ela. 


A rotina, deusa, senhora, mãe!

Ajoelhemos-nos ao tocar do alarme, 

dois Horários do comboio Nosso,

um par de Avé Recorrencias Diárias, 

um sigilo de protecção sobre o relógio,

que ele nunca nos falhe!


Chegámos a ser deuses!,

a intangencialidade do supremo encarnada,

a potência das galáxias num envelope

de carne,

o sublime acto da criação

nascia do nosso mais pequeno pensamento!


Hoje, 

escondemos-nos da cor dos segredos

e procuramos apenas

uma sombra que nos esconda

do sol do nosso potencial. 


19.12.23

a última estação

era esse o mal do mundo, 
da babel mergulhada
no ócio do esquecimento,
uma psicose indiferente, 
uma tentação puxada a ferros,
um exagero divino

era essa a reminiscência subtil
do pecado original:
abdicar da mistificação do amor,
acreditar que a nitidez do sentimento
era não transubstancial,
que a metafísica do coração
eram apenas poemas de velhos bêbados

era na sexualidade incontinente
em que se apoiavam como bengala
qualificando-se apenas pela proeza
pela pujança, pelo seu numerus clausus,
que se refugiavam do real

na convicção inexorável de que
a patética herança da existência
era apenas a morte

no doméstico banal do carnal,
na superação contractual do básico, 
no desprezo racional ao sobrenatural,
em todas essas faces ele aparece, 
esse, o mal do mundo, fim do fundo, 
o núcleo escondido do adúlterio,
a porta do Apocalipse eterno,
o término fatal da criação. 

17.12.23

estereoscópica visão

 naquela casa,

o cheiro das maquinas e o crepitar da electricidade,

o peso da tecnologia, 

um futurismo da alma que abraça o amanhã

e esquece o dia de hoje, 

tudo isso escondia o suave lampejar das chamas

na lareira de tijolos de barro, 

também ela ciência e futuro no passado


há monstros no céu, 

mas esses nada assustam a quem no chão

existe


há paraísos na terra, 

infernos ao acordar e

até um purgatório de se ser,

mas naquela casa


ouvem-se as máquinas, maquinando

e o ar é elétrico em espasmos de esperança

por uma mansão, palacete de pedra

cabana de canas,  a cama camaleonica

onde dormem os sonhos da paz


nessa casa, 

onde a luz brilha com estrondo

e as sombras escondem os medos, 

nessa casa, 

onde não há presente, 

apenas futuro e passado,

nessa casa,

onde se finge que a existência é substância

e onde se sorri o esquecimento

nessa casa, 

onde só nesgas de sol entram

e todos os cantos são escuros

e cada segundo demora uma eternidade

nessa casa,

onde poema é um nome

e amor um verbo

nessa casa

sorri-se a cada olhar

e choram-se todas as ausências

1.3.23

Panoptica Universalis

o olho que tudo vê
a boca que tudo come
sensação de prisão
de esgotamento da alma
sou pura engrenagem
consumida pelo óleo que me lubrifica
sou o peso dos anos em branco, 
o espaço entre as palavras
que disse, que não disse
que fiz que não agi
que sonhei e perdi
sou o nada antes do nada
o vazio entre vazios
não me podem ver
porque não existo fora de mim

o olho, 
sempre esse olho,
em chamas de virtuosismo,
sempre esse sorriso inexistente
adivinhado apenas pelas rugas
ao canto do olho, 
o olho que grita silenciosamente
para que obedeça, respeite, aceite
aceite o meu lugar
aceite o meu destino
aceite o meu sofrimento
"inevitável, incontornável, inexcapavel.
 Resigna-te ao teu buraco no chão
 o teu universo são as grades da prisão"

escolher cada minúscula partícula
do ferro que forma as portas
desta jaula inviolável que sou o ser
que eu sou
pintar cada centímetro das paredes
com slogans pró isto e aquilo
anti estes e os outros
sou livre de ser prisioneiro
sou um ser individual e único
igual a todos os outros

encolho-me,
o olho perfura-me agonizante a mente
olha para dentro de mim
e berra em tons mudos 
na massa cinzenta que me faz eu
és único e lindo e individual
não sejas ovelha, pensa como nós

escondo-me,
a parede da minha pele parece fina
transparente
sem fisicalidade aparente
uma casca de ovo já quebrada

ofereço-me,
toma o meu corpo
já que a alma já a tens

resigno-me,
vivo dentro de Mamon 
consumido que fui à nascença
e daqui nunca sairei

o olho. 
o olho que tudo vê. 
o olho que tudo sabe. 
o olho que em todo o lado está
sempre junto a mim. 

confesso-me cansado de ser só eu
quero ser mais. 
quero ter mais. 
quero.. querer mais!
porque não hei eu de apontar minha mira
aos céus infinitos?
porque hei de ser eu toda a vida
apenas infinitesimal partícula de pó
se posso ser o vento que a carrega?
porque hei de viver fechado na mediocridade
quando posso voar nas alturas da grandeza?
está decidido!

serei rei, senhor, mestre!
a mim virão dignatários prestar tributo
a mim a grandeza do mundo futuro
irá agradecer e cantar canções de louvor
eu serei a pedra mestre da humanidade vindora
construam sobre mim as catedrais
do pensamento
ergam mas minhas costas pirâmides
de progresso
desenhem na minha pele os sigilos do ódio
pelo antigo e ultrapassado
escrevam com o meu sangue
os manifestos de adoração aos novos deuses
cantem com a minha voz
hinos à glória do senhor : EU.

encolho-me,
megalomamia esquecida pelo bruto acordar
do real

sou nada, 
um ponto final numa nota bibliografica
que ninguém lê, 
sou apenas mais uma ovelha
com a mania que é.

o olho sorri, 
sonhei
e voltei ao casulo do desejo
catarse instantânea
efémera
vazia
...
.
o olho que tudo vê
voa não sobre
mas dentro de mim
eu sou o olho que me vê
eu sou a prisão que me prende
eu sou a ideia que me nega a ideia
o pensamento que me faz burro
as correntes com que me prendo a mim
eu sou o fim do meu inicio
ainda antes de começar
e o início do meu fim
a cada passo que dou ao respirar
vejo-me pequeno
e não consigo imaginar-me mais do que isso mesmo

sou irrelevante porque irrelevante me fiz

18.7.21

Vaginofilia (NSFW)

 Estetoscópia-me os tomates

e deriva do esperma a logarítmica

do prazer


vende-me barato na feira,

como se fosses uma cigana assanhada

e eu

mercadoria roubada.


veste o meu melhor fato

que hoje jantamos fora,

estou rico

encontrei dez cêntimos no chão,

deve dar ao menos para pagar o pão

e fugimos após as entradas


aí onde os sonhos são rabanadas

e as panelas testos usados

podemos ser felizes um dia

mas não hoje, 

não agora,

talvez noutra semana,

semântica selvagem semiótica

sem 

nexo

sem 

sexo


viva a ditadura!

que ela mole

não entra no buraco.


serve-me com espinafres

que quero que sejas forte

para aguentar a minha sorte

morte lá no norte

sorte.


vamos!

segue-me pela vereda,

entra atrás de mim por um beco

e eu beijo-te as mamas,

atiro-te contra a parede,


"Ah! caíste na minha rede

 e ninguém te pode salvar!"

 

espero,

pacientemente

que comeces a gritar

(sem berros não tem piada brincar)

antes de te arrancar

peça a peça

toda a roupa

e te penetrar

devagar,

devagar,

divagar,

divulgar

de vulgar lugar cantar,

com épica emoção!

uma qualquer velha canção,

não importa qual.


cospe-me a meita nos sapatos

e diz que o leite estava estragado, 

fora de prazo!


3.11.20

imencidades

Imensidades de betão enchem o horizonte
E o rio de alcatrão negro não desagua
Em mar algum

Formigas de fato e gravata 
seguem ordeiramente pela margem calcetada
Engolidas pelas cavernas negras,
Bocas sem dentes nem língua no chão

Como num pesadelo a cores
Suspenso vertiginosamente de uma nuvem
Anseio pelo abraço mortal do solo


11.10.20

Ecclesiastes 12:14

 experimento a exclusão de existência:

indecência elevada ao expoente de ciência


estranho estar este, esdrúxulo e espesso

existir esquecido no extremo espaço negro

que fica entre o ontem e todos os amanhãs

que amanhecem, amanhados e amontoados

a um canto de um corredor caindo,

caindo como cometa,

correndo contra a crosta terrestre que têm

tudo, tanto teórico como prático

tanto tântrico como imediato, precoce,

percorre perto do preto porto perene

pedindo a deuses uma luz que o alumie

que acenda lugares, leitos, lentos lumes

lentamente queimam a cor perdida da palavra


sepulcros sem sepultados e masoleus

erguidos a quem nunca nasceu neste nada

neste vazio, esta pausa entre pausas,

este irritante espaço que fica entre tudo,

entre cada sorriso e entre cada lágrima,

entre cada palavra dita, omitida, desmentida

esquecida.


fel! Nojento fel que me escorre da boca

em forma de sílabas conjugadas em conjunto

atiradas umas às outras com uma pausa,

apenas para respirar e ganhar fôlego para

berrar mais ainda, para que

toda a minha raiva, todo o meu ódio,

tudo o que existe em mim de FÚRIA,

e este fel que escorre nojento da minha boca

não se acalma, não me acalma...


há cadeiras vagas que me olham nos olhos

como se alguém lá se sentasse e,

com divinas potências, me julgasse

Essas cadeiras vazias que me BERRAM

o quão inútil, ignóbil, indesejados sou

com uma voz vazia de som, esse silêncio

tão pesado.


13.9.20

mansão

 no começar de uma noite

havia uma pausa

um espaço entre quem está

e quem estará


uma brecha,

um começar

após um finalizar

um renascer em mim,

conhecer de novo quem sou

e onde nasci


um novo ponto final

onde acaba tudo o que é

e começa tudo o que será,

uma mansão que olha

despreocupada

as terras que lhe dão de comer

e sobre elas chora,

lágrimas de dinheiro,

sempre dinheiro, ouro, sal.


uma casa sobre um monte

que não é seu

mas onde sempre viveu


um promontório

que vê o mundo

longe

e afastado,

como a tristeza sempre o é,

da realidade


estamos aqui,

longe do mundo que nos viu

que nos fez crescer

que nos deu o aparecer as

sob a luz do sol


somos essa casa senhorial

no monte

na espectativa do futuro,

perdidos

mas não desencontrados

ainda.

30.8.20

epílogo

 nasci no ponto final de uma frase
e toda a minha vida não fui mais do que isso:
o acabar de uma coisa antes do começar
de outra qualquer
sou, portanto, isso mesmo:
o acabar de todas as coisas
o término fulminante, explosivo
de algo
e nunca o começar,
nunca o nascer de um novo sol,
nunca a alvorada de um novo dia,
só o pôr do sol,
a recta final,
o último fôlego de alguma existência.

comecei onde as coisas findam,
naquele momento em que tudo
deixa de ser o que é
e procura uma nova razão
uma nova realidade onde ser

serei sempre apenas isso:
um ponto final nas orações de outros,
uma casa onde se vai morrer
antes da glória da ressurreição,
um beco sem saída
de onde tens de recuar para sair


nunca serei a alvorada a crescer
sobre os montes virgens
nem a semente de uma nova vida,
nunca terei em mim a seiva
do novo dia

sou um fim
um terminar
o último fôlego
de um respirar doente
a última palmeira
antes do deserto.

3.7.20

  e um ano nasce e um ano morre,


a existência é sem ter de o ser.


Sou feliz em cada trago de cada cigarro

,em todos os shots e todos os brindes

,em todas as tardes no sofá,

,e

em todas as manhãs a teu lado,

tenho em mim o sorriso completo

de quem dorme feliz

e acorda melhor

... 

e cada estrofe rima melhor 

que a anterior 







24.12.19

pingado, como o café

pingado, como o café
caído à beira da esquina
fugido como corvina no mar salgado
a espera de uma palavra certa
que traga aberta em si a porta do lado
que a da frente da mente não sente

não existe em mim nenhuma fé
sou capela dessacralizada
necromancianda de regresso
ao nascimento da civilização enfadada
pela cor escura do sentimento perdido

cerveja! drogas! borgas! inveja.


15.7.19

pausa.

pausa.

sempre estas pausas entre tudo.
sempre este parar, esperar.

pausa.
pára, espera!

mas vejo o resto do ciclone
a chegar,
daqui de dentro do olho

preparo-me para o embate,
combate?
não,
estou rendido e derrotado
e sem luta para dar.

pausa.

mudamos de posição,
damos 3 passos para desntropecer as pernas
e deitamos de novo as nossas esperanças
que cada dia pesam mais
e valem menos.

"é doce o sabor das lágrimas de amor"
escreve o poeta, mentindo-se:
toda a lágrima sabe a sal

pausa.

o corpo diz-me que está aqui,
mas não lhe ligo,
não acredito nele,
se não posso acreditar no amor,
porque havia de acreditar na carne?

ilusões!
ambos ilusões,
somos apenas a consciência da existência
e estamos sós,
uma semente de vida na escuridão
(a absoluta escuridão do nada)
e toda a realidade é apenas
algo que desesperamos por negar.

pausa.

finjo-me real e físico e matéria.

pausa.

demasiado tarde,
imensamente demasiado tarde.
vejo o ponteiro a mexer,
vejo o minuto a passar,
o passado,
acaba.

pausa.

tenho já as lágrimas que te irei chorar
nos olhos,
ansiosas por correrem pela minha cara abaixo
conhecerem o sabor da minha pele
da minha barba,
das minhas mãos.
querem sair,
estão presas à esperança há tanto tempo,
querem largar-se,
saltar.

pausa.

estranha serenidade triste me invade
um zen de quem deixou para trás
a crença na felicidade e assim
é feliz apenas em a ter conhecido.

pausa.

abro os olhos para fora de mim,
não,
de nós. Não estou em mim,
estou em nós,
mas nós... nós não existe
não é igual,
não é completo o nosso palácio,
falta-lhe a alma de nós

agarro-me aos fragmentos
da tapeçaria remendada e reremendada
com as duas mãos,
ganancioso de tudo o que existe ainda,
não quero perder um único segundo
que já perdi tantos...

pausa.

o tempo não existe aqui.
é ainda aquele mesmo dia em que cá fiquei,
sozinho,
pela primeira vez.

estás nestas paredes,
elas fazem parte das tuas estrofes
a tua presença aqui abraça-me
e faz-me calmo

pausa.

a vida terá de continuar,
não pára por algo tão pequeno
como a morte de um futuro apenas,
dois.
morre também o teu.
mas tu já o tinhas morto antes,
não foi?
e eu,
raio de mania que tenho
que comando o destino do mundo
e tenho poder sobre os mortos...

necromante de merda que me saíste,
que tudo o que ressuscitas
morre logo de seguida..

pausa
e após a pausa, outra pausa.

os tentáculos do tempo não têm pressa
para me apanhar,
carregam neles toda a inevitabilidade
daquilo que é.

pausa.

destrói-se a mente um pouco mais
para não ter de pensar
para conseguir fingir,
por breves que sejam os segundos da fé,
que tudo está bem,
melhor que isso até!

que o sol que brilha realmente aquece
este frio imenso
que a música que berra realmente acalma
este tremor constante
que...

pausa.

e quebra a ilusão.

pausa,
e volto a estar aqui
dentro da tua carne de estuque e cimento
mas a tua alma ainda não está cá
e a minha
já não ecoa como ecoava

pausa.

como é estranho sentir já saudades
do sítio onde estou...

pausa.

não vejo um caminho fora deste:
quis com tanta força ser este teu eu
que me esqueci
de qual seria o verdadeiro
meu eu

pausa.

toda a espera é em vão,
"há sempre um inverno a seguir ao verão"
e uma lágrima no fim de casa sorriso.

pausa.

não quero fumar mais,
não quero beber e esquecer,
quero estar realmente aqui
quando tu chegares
para que todo eu se possa despedir de ti.

pausa,
sempre em pausa,
há horas em pausa,
há dias em pausa,
há semanas, meses!

tudo parado,
à espera da tua chegada a casa
para te dizer
bem vinda, os teus animais esperaram por ti.

...
pausa.

sei que devo comer,
sei que a minha cara deve ser a de quem morre,
uma sombra do que era.

queria esperar,
mas não sei quanto mais consigo aguentar...

pausa.

e tudo rebenta neste nexus de possibilidade
e colapsa, colapsará em realidade
assim que o tempo voltar a andar.

pausa.

somos o intervalo entre o mundo
e o sonho.

27.6.19

um funeral para Lucifer

-0-
a longa cobra metálica cospe pessoas
pelas suas muitas bocas desdentadas
um rio de almas que corre,
enfia-se pela garganta de pedra da Mãe
desaparecendo para sempre
fugindo pelos portões rumo ao sol

encolho-me entre corpos passantes
e espremo-me em direção ao dia
lá fora é dia mas aqui crepúscula a hora
todas as horas
sempre este amarelo doente nos olhos
sempre este fresco falso e seco
sempre este murmurar constante

-0.5-
uma procissão quase solene, em passo apressado
fato domingueiro coçado e gasto
as camisas de gola semi-aberta e a gravata a sair do bolso
das calças

-1-
as cordas prendem o corpo ao chão
colchão de alcatrão que será caixão
levanto aos céus uma mão vazia,
implora clemência misericórdia perdão
mas é tarde, já me engole a terra
e os insectos atacam-me a pele seca,
vão comer até chegar ao osso
e eu serei branco puro finalmente
toda a carne pecado limpa de mim
e na boca um suspiro de alívio, fim

-2-
há uma esquina que pertence às putas
entre duas ruas sujas da idade,
e lá sentado um mendigo,
mais gasto que velho,
com a luz dos olhos cansada, esbatida
diz ele que até os anjos apagam a luz um dia
que até o sol se cansa e foge,
desaparece

-3-
um templo no topo de uma colina
colunas como dedos de pedra
esticando-se para agarrar o céu
e dele arrancar as nuvens

no altar um copo de vinho velho
e um cinzeiro cheio até transbordar

e atrás dele um padre reza

-4-
morre sozinho,
o velho anjo mendigo
sem um suspiro de alívio
nem um berro de desespero
só o sorriso triste
de quem já se esqueceu quem foi
e de como se ama

-5-
ratos e baratas rodeiam o corpo
numa última adoração ao seu senhor
o cadáver velho da putrefacção
e o cheiro forte da morte
que se eleva ao ar.

-6-
um templo de cimento quadrado
e o corpo atirado a um forno
onde arde e se livra em fim
do pecado.